“Eu estava nervosa. Mas aí, na hora em que começa [a palestra] é a melhor coisa, porque eu esqueço de mim… Eu saio renovada. Aprendi muito com todo mundo, até comigo mesma! Isso é a definição do Brasil. Temos que voltar a ficar todos em roda.”
Lydia Hortélio, no finalzinho de sua fala no Fórum de Ideias do Sesc Rio, em outubro de 2019
Num mundo do jovem e do instantâneo, que alegria saber que ainda há produtores, organizações e pessoas que prezam em ouvir o que pessoas mais velhas têm a dizer.
Fiquei entusiasmada com o convite por si só: fazer parte de um bate-papo para quase 200 gerentes e educadores das unidades do Sesc do Rio de Janeiro, num hotel delicioso em Teresópolis. Mas o que me encheu o coração foi saber que estaria eu ao lado de uma senhora de 87 anos de idade. E que era a grande Lydia Hortélio.
Não entendi como fui parar ao lado dessa mulher incrível no Fórum de Ideias e topei de imediato. Imagine só que privilégio conhecer essa grande musicista e educadora! Qualquer pessoa que passou pela educação infantil sabe da importância de sua pesquisa e certamente cantarola pela sala de aula algumas das canções reunidas no álbum Abre a roda tindolelê.
Fomos, nós duas, até Teresópolis, cidade que ela guarda no coração por ter conhecido tão bem nos anos 50. Nos encontramos no saguão do hotel Sesc Alpina, algumas horas antes de nossa fala.
Enquanto minha apresentação estava pronta e decorada, a dela, claro, não. Ela não estava certa de qual rumo tomar para conversar com aquelas pessoas… Deveria mostrar suas fotos coletadas de tantas infâncias? Deveria falar sobre música? Ou ainda experimentar com eles brincar? Essa última ideia, vinda da organizadora do evento, foi prontamente rebatida na espontaneidade irresistível de Lydia:
“Oxi! E você já viu 100 meninos brincando numa sala fechada? Viu?”
Éramos em quase 200 pessoas e Lydia estava certíssima em sua colocação. Tantos anos estudando o papel central da natureza no brincar para agora fingir brincar numa sala cheia de cadeiras?
Anos de estudo e prática têm suas dádivas. Minha apresentação estava pronta há dias. Passei a viagem inteira decorando slides — se eu não falasse sobre as emoções e o lúdico, não tinha mais nada para dizer! A apresentação de Lydia não estava pronta, claro que não! Lydia queria saber mais daquela gente. Não se contentaria em subir num palco (como inclusive, se recusou, falando da plateia mesmo) para comentar sobre ela ou sobre o que pensa ser o que eles precisam. Lydia, aliás, não estava lá para falar, estava ali inteira para oferecer.
Após alguma conversa decidiu qual caminho ia tomar. Puxou um pen drive de dentro de uma de suas pastas, cheio de fotos de brincadeiras infantis, coletadas ao longo de uma vida inteira, de todos os lugares do Brasil e do mundo. Elisinha, como Lydia chama sua única filha, hoje uma grande flautista, figurava criança em algumas delas.
Em minha apresentação, fiz uma fala inicial, mostrando pesquisas preocupantes, como uma da Organização Mundial de Saúde que mostra que o Brasil está com altos níveis de depressão e ansiedade. Após minha fala, sem deixar escapar a deixa, Lydia disse:
“O ser humano é pra ser rei de si mesmo. Ouvindo tudo isso, o estar da humanidade, eu não posso continuar! Alguma coisa vai acontecer. Nós estamos diante de um salto.”
E com a poesia de quem não se deixa levar pela tentação da teoria, falou por mais de uma hora lindamente juntando as imagens da projeção com reflexões muito profundas.
Aqui embaixo, alguns trechos que transcrevi na hora mesmo da fala de Lydia. São frases pontuais de falas completas e arrebatadoras. Um pouquinho do que Lydia escancarou aos meus olhos e eu adoraria dividir com vocês.
1) A teoria não basta
“Desisti de todas as antropologias! É muito mais simples! É ação e movimento… Desconhecemos o que é o ser humano, por isso a escola não dá certo. O ser humano é um ser aprendente, Deus é bom de bola!”
Esse trecho mais parece coisa de Manoel de Barros. Lydia é uma grande pesquisadora do brincar, mas foi na observação meticulosa que entendeu de fato o que acontece nesses momentos sagrados.
Ela não desdenha da antropologia em suas falas sobre as culturas das infâncias. Ela cita grandes pensadores o tempo todo, mas deixa claro que a teoria não basta para nós, educadores, entendermos o brincar. Aliás, a teoria é sedutora demais. Perigosa. O brincar só se dá na prática.
E aí que essa fala de que “desconhecemos o que é o ser humano”, muito me traz de que desconhecemos sobre nosso mundo interno enquanto entretidos com outras coisas tão superficiais e que parecem tão importantes. Na prática mesmo, o que sabemos de nós? Quais qualidades que nos farão de fato florescer? E como estamos fazendo isso?
2) Menino gosta de fazer
“Na mão do menino tudo se transforma em brinquedo. Quem tem filho sabe: chega pintor, eletricista em casa, os meninos saem tudo correndo! Menino gosta de fazer!”
Que ideia essa de achar que precisamos chamar a atenção das crianças, ganhá-las, seduzi-las com um saber perfeito, superior e consumível. As crianças já estão interessadas, cabe a nós não atrapalhar!
Se o menino não está interessado, então, que olhemos o que estamos fazendo de errado. Que olhemos para o que move sua energia. Que a gente possa propiciar esse ambiente fértil de ócio e natureza, para que o interesse surja, sem mais expectativas.
Ninguém nasceu para fazer vestibular. Estamos, todos, da infância à velhice, interessados em ser feliz e em nos conectar.
3) Brinquedo não é para ser pedagógico
“A gente quer transformar o brinquedo em brinquedo pedagógico.”
Ai, que tema complexo. Então o brincar não é para aprender? Não. O brincar não é para se desenvolver? Também não. Mas brincar não faz com que a criança brinque e se desenvolva? Sem dúvidas! Mas sem a expectativa e o controle do adulto e desse saber encapsulado.
Não me contive e enviei essas frases, enquanto ainda em Teresópolis, para minha grande amiga, também educadora, Juliana. Do parque da escola em que trabalha, Ju me enviou essa foto:
E para terminar: confiança no que nos une
O mais bonito desse grande encontro com Lydia foi que, além de criticar duramente a escola tradicional (e as escolas com roupagem atualizadas também), ela humanizou o processo, sem apontar culpados.
“Em uma coisa vocês podem acreditar…”, disse ela, num trecho em que não consegui transcrever perfeitamente mas que foi mais ou menos assim: “Vocês podem confiar na professorinha. Se ela estiver interessada, ela vai dar o melhor para aquelas crianças, ela vai deixar elas brincarem”.
Nada mais bonito do que lembrar do que nos une. Da motivação para seguirmos esse caminho de lidar com pessoas!
A fala ali do início, com a qual Lydia fechou sua participação no Fórum de Ideias, também me toca muito. Ela disse que saiu renovada, que esqueceu dela mesma!
Que lição para todas as vezes em que formos subir num palco. Deixar de lado minhas vontades e olhar de fato: o que posso oferecer de mais benéfico para essas pessoas que me cercam?